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ETNOLOGIA E ETNOFILOSOFIA: em busca de uma filosofia africana

1. ETNOLOGIA E ETNOFILOSOFIA: em busca de uma filosofia africana

No século XVII, com a expansão europeia , o progresso da ciência e da técnica alguns pensadores como: Hegel, David Hume, Auguste Comte, Levy Bruhl, desenvolveram uma ideologia eurocentrica baseada no pseudo- princípio de que fora da europa não havia evolução e nem história. Convencidos de que a história é linear e progressiva na qual um espírito vai repousando nos povos até atingir o espírito absoluto na europa (Hegel), e por uma visão uniformizante da história pelo evolucionismo classificando as sociedades segundo o seu grau de desenvolvimento técnico, olhando o genero humano e a civilização como uma unidade em evolução passando pelos estados teológico, metafísico e positivo (Comte), defenderam que a áfrica estava fora da história e da civilização, nela encontram-se povos sem cultura, barbárie e primitivos. Ao ponto de sentenciarem que o negro é incapaz de filosofar (levey Bruhl).

Nos últimos tempos esta mentalidade foi superada e surgiram muitos debates em torno da questão da existência ou não de uma filosofia africana, que no fundo é a problematização da consciência do africano da sua existência, suas escolhas, liberdade de traçar seu destino, ou seja, a capacidade do africano ser ele mesmo sem a pressão externa: colonialismo, FMI, BM, União Europeia, e doadores para elaborarem as suas políticas.

Estes avanços deram-se graças ao esforço da tentativa de perceberem os povos africanos levados acabo pela etnologia, esta é uma ciência que estuda os factos e documentos recolhidos pela etnografia: os povos, as suas origens, suas línguas, religiões, costumes, mitos, próverbios (Cfr.AA.VV, 2006). Grupos há de pensadores como Plácides Tempels, Alex Kagamé, Jhon Mbite, que consideraram os resultados destes trabalhos como filosofia africana especial “etno-filosofia”.

Porém a etno-filosofia segundo Paulin Hountondji, é um trabalho etnológico com a pretensão de ser filosofico (Cfr. Castiano, 2010, p.98). Servindo-se da recolha de dados etnograficos, dizeres populares, apresenta-os como filosofia constituindo uma ilusão, pois, para ele por filosofia africana deve entender-se o conjunto de textos escritos por africanos e considerados como sendo filosoficos pelos seus próprios autores (Op.cit., 2010, p.99). Definição esta que suscitou muitos debates posteriores.

Como constata Ergimino Mucale a questão sobre a existência de uma filosofia africana é a questão sobre a racionalidade e por via disso, humanidade do africano. “a filosofia africana não existirá pelo facto de se afirmar que ela existe e nem deixará de existir porque alguém quer que ela não exista” (Cfr. Macule, 2013, p.71). Assim sendo, o que importa é reflectirmos sobre o que se entende por filosofia africana e como consolida-la.

1.1 Os percursores da etno-filosofia: Tempels, Kagamé e Mbite.

Levada pelo etnocentrismo a Europa “civilizada” vê o chamado novo mundo como um mundo de custumes selvagens, sem religião, espírito degradado, povos sem escrita, sem arquivos , sem estado e consequentemente, estes não pertencem ao mundo histórico em todas as suas formas , moral, civil, política. Ao contrário dos povos com escrita.

Deste modo o negro foi despido totalmente do mundo histórico universal e da sua humanidade e o augé desta corrente de humilhação do negro encontrou-se em Hegel, afirmando fortemente que a africa esta fora do movimento da história universal, porque nela e dela não emergiram nem a razão, nem a liberdade. É o país da infância, e o negro representa a natureza no seu estado mais selvagem (Cfr. Ngoenha, 1993, p. 79).

Para resgatar a humanidade negada ao negro surge Plácides Tempels missionário belga, sustentando que o negro é completamente Homem e que o grande pecado do colono foi tê-lo reduzido à dimensão de criança ou de um semi-home, de pensar que ele era inferior, e de tratá-lo como tal (Ibidem, p. 81). E para tal ele desenvolveu na sua obra “Filosofia Bantu”, marcando o inicio da produção filosofica escrita em africa, uma filosofia bantu.

Plácides Tempels, usando a filosofia escolastica como modelo atribui ao povo bantu uma filosofia: uma ontólogia do ser lógico-coerente, porém ela não pode ser apreendida pelo próprio bantu, necessitando do europeu para o faze-lo com as disciplinas que tem o bantu como objecto de estudo.

Chega a constatação de que existe uma filosofia do negro porém ela é diferente da filosofia europeia. “O bantu não exprime um pensamento lógico pessoal e coerente, a sua ordem é ontologica directa,colectiva e imediata”(Ibid., p. 83).

Alex kagamé na mesma linha de Tempels na sua obra “Filosofia Bantu Ruandês do Ser”, defende a existência de um sistema filosofico do ser bantu. Ele traça o seu projecto filosofico para compreender a maneira bantu de conhecer o universo através da análise gramátical rigorosa das estruturas linguisticas , tomando para a sua reflexão como base a lingua Kiryarwanda (Ibid., p. 83). Aristóteles já o fizera com a lingua grega determinando dez categorias ontologicas, no entanto, Kagamé encontrou apenas quatro categorias metafísicas bantus:

“Umuntu”- ser dotado de inteligência; “Ikintu”-seres privados de inteligência; “Hantu”-conota as categorias de lugar e tempo e “Ukuntu”- designa modalidades e engloba outras categorias inumeradas por Aristóteles (Ibid., p. 84).

Segundo Kagamé, as estruturas linguisticas ruandesa revela a existência do pensamento como poder de abstração, análise e definição, porém, de um modo inferior ao do pensamento de Aristóteles. Ele considera que os bantus não tiveram própriamente uma filosofia: existiram filosofos intuitivos sem filosofia, metafísicos de génio e intuitivo sem metafísica.

John Samuel Mbite, na sua obra “African Religions and Philosophy” defende que os africanos tem uma forma própria de pensar e conceber o mundo em que vivem, eles pensam filosoficamente a partir de conceitos e práticas tradicionais religiosas. Segundo ele “filosofia africana refere a compreensão, actitude da consciência, lógica e percepção por trás da maneira como os povos africanos pensam, agem e falam em diferentes situações da vida” (Op. Cit., 2010, p. 81).

1.2 Os críticos da etno-filosofia: Crahay, Hountoundji, Eboussi-boulaga e Towa.

Os etno-filosofos foram logo reprovados pois somente aplicaram a filosofia a etnologia como simples observadores sem construir um pensamento original. Segundo estes críticos eles consideraram a filosofia como uma visão colectiva do universo, uma coleção de ideias, mitos, pensamentos morais e políticos aceites como valores autenticos e indiscutiveis de caracter colectivo e não pessoal, ao passo que para eles existe filosofia simplesmente onde existem filosofos individuais que se dedicam livre e responsávelmente na procura da verdade (Ngoenha, 1993, p. 89).

Para Franz Crahay, o trabalho de Tempels não é filosofia pois esta é uma reflexão explicita, análitica, sistemática, exerce uma crítica e auto-crítica radical. Tempels confundiu a visão do mundo com a prática da filosofia. Do mesmo modo, Paulin Hountoundji vê a filosofia não na etnologia: nas lendas, mitos, contos orais, religião, mas sim, na reflexão sobre textos escritos pelos africanos e considerados por eles de filosoficos.

Para estes pensadores críticos no ambito do seu distânciamento da etno-filosofia, a existência de uma suposta filosofia africana depende da existência de filosofos africanos legitimados não só pelos diplomas universitários, mas pelo facto de escreverem o que Hountoundji chamou de arquivos e, através dele, instaurarem em africa uma tradição crítica (Cfr. Ngoenha, 2004, p. 38).

1.3 Os críticos dos críticos: Dieng, Binda, Ngoenha, Ergimino, Castiano.

O trabalho dos críticos da etno-filosofia é salutar, eles deram uma nova orientação teórica a noção da filosofia africana, superando a visão colectiva do mundo apontada pelos etnofilosofos para uma literatura filosofica africana. Constituiu um esforço de superação de uma filosofia africana limitada nas questões tradicionais e um pensamento de consenso e unanimidade de todos africanos, uma filosofia com imagem anti-filosofica que não possibilita um debate crítico. Porém os seus posicionamentos foram alvos de algumas criticas por parte de alguns filosofos africanos:

Amady Aly Dieng, interroga-se sobre o significado do termo etno-filosofia e acrescenta que o uso do termo apresentado por Towa e Hountondji, é o resultado lógico da sua falta de atitude crítica para com a orientação eurocentrica da filosofia, universitária.

Ngoma Binda afirma que “uma leitura não polémica de Tempels teria falado da filosofia etinologica, como se fala de filosofia económica ou de filosofia política.

Contra Hountoundji, Ngoenha procura saber se deve entender-se por filosofia africana somente os textos escritos ou também a palavra não escrita ou seja a tradição oral. Não terá esta definição de filosofia uma orientação eurocentrica? (Idem, p. 90). Na mesma linha Ergimino Mucale sustenta que não esta claro ou não são suficientes em Hountoundji os critérios para se validar os escritos de um pensador africano como filosofia africana, pois, o simples facto de serem textos escritos por africanos não é uma garantia. Para ele é necessario a estes critérios acrescentar dois requisitos importantes: a pro-africanabilidade do discurso e o substracto metafísico africano (Mucale, Op. Cit., p. 80).

Para Castiano os críticos da etno-filosofia procuram fundamentar uma filosofia africana na base dos canones da racionalidade e não das racionalidades. Na sua opinião a filosofia africana não deve negar o património filosofico ocidental. porém deve tomar uma atitude de confrontação para com estes sistemas, olharmo-as com a consciência de que o seu edificio teórico foi constituido para dar respostas concretas da sua região e época. A filosofia africana deve emancipar-se do eurocentrismo e do debate tradicionalista e questionar assuntos que dizem respeito a africa e não só (Cfr. Castiano e Ngoenha, 2011, p. 135).

1.3.1 A crítica radical a etno-filosofia e aos etno-filosofos em Severino Ngoenha

Severino Ngoenha desenvolve uma crítica radical a etno-filosofia e aos críticos desta pretensa corrente filosofica na sua obra “Filosofia Africana: das independências às liberdades” (1993), apontando que o compromissio da filosofia é com o futuro e não com o passado, e o nosso dever ser filosofico deve estar ligado a problemática da construção do futuro, que para ele afigura-se como “um conjunto de projectos, de possíveis, de esperanças, de liberdades” (Castiano, 2010, p. 107).

Diante desta problemática da filosofia africana nós identificamo-nos com esta posição assumida por Ngoenha. A filosofia africana é um projecto de futuro, de construção da nossa existência na qual todos nós devemos nos sentir comprometidos.

O reenxame e a crítica da etno-filosofia deve ser feita em função dum projecto futuro de sociedade e não num simples desejo intelectualista de escavar informaçãoes sobre nossas tradições, costumes, lendas, mitos, sabedorias, passado. Ngoenha constata que a etno-filosofia, assim como os seus críticos taís como : Franz Crahay, Marcien Towa, Hountondji, Eboussi-Boulaga (Ngoenha, 1993, p. 89) não ficaram totalmente livres da tendência de olhar mais para o passado, enquanto que para ele a missão da filosofia africana é de reinterpretar o estatuto da modernidade e da tradição em função do projecto futuro de sociedade.

Para Ngoenha a etno-filosofia deve estar ao serviço deste projecto futuro e não como um dado já adquirido, uma filosofia já feita, acabada, visão colectiva do mundo. Segundo Ngoenha os pensadores críticos não foram radicais, pelo facto das suas críticas basearem-se num quadro conceptual de uma cultura filosofica ocidental, eles procuram definir a filosofia africana recorrendo-se a esquemas filosoficos europeus, deixando-se levar pelo etno-centrismo filosofico ocidental.

Para Ngoenha a filosofia africana é um projecto de futuro aberto e, descontinuo e a sua existência passa pela existência de filosofos africanos que escrevem (Ibid., p. 93) pois, só assim possibilita-se o exercício de uma actividade crítica e sistemática porém, o que a fundamenta é a criação de condições para a abertura de espaços de um verdadeiro debate em torno de problemas africanos e não o facto de ser textos escritos ou oral.

Em Ngoenha os contos morais , as lendas didácticas, os aforismos africanos , os próverbios podem e devem servir de documentos filosoficos , ou seja como ponto de partida para uma reflexão crítica e livre e apartir dai descobrir-se uma nova estrutura teórica para a história da nossa filosofia (Castiano, 2010, p. 110). Porque a filosofia para ele“ é uma investigação perene que se faz através de textos, os quais nos permitem e servem de elementos de confrontação e discussão quer entre nós africanos, como com o resto do mundo”(Ngoenha, 1993, p. 93).

Segundo Ngoenha a etno-filosofia ficou no nivel empírico: não é filosofia mas etnologia e sociologia , o primeiro caminho que a filosofia africana deve percorrer é um intinerário crítico, metódico e dialéctico em direcção a conquista de nós mesmos (Ibid., p. 99) E o segundo é uma confrontação crítica com os críticos da etno-filosofia pela ausência de uma atitude crítica para com a orientação eurocentrica da filosofia.

2. Considerações finais:
O tema desta comunicação motivou-nos na busca da essência da filosofia africana que quanto a nós é a tomada da consciência da nossa existência, das nossas escolhas, da liberdade de traçarmos o nosso destino e de sermos nós mesmos.

3. Bibliografia final

AA.VV. Dicionário Universal da lingua portuguesa, Moçambique Editora, Maputo, 2006.

CASTIANO, José Paulino. Referências da Filosofia Africana: em busca da intersubjectivação, Ndjira, Maputo, 2010.

«Filosofia, Ensino e Intersubjectivação» in NGOENHA, Severino Elias e CASTIANO, José Paulino. Pensamento Engajado, Educar, Maputo, 2011.

MUCALE, Ergimino Pedro. Afrocentricidade: complexidade e liberdade, paulinas, Maputo, 2013.

NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana: das independências às liberdades, Paulistas-África, Maputo,

___________, Os Tempos da Filosofia: Filosofia e Democracia Moçambicana, Imprensa Universitária , UEM, Maputo, 2004.

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