ORIGEM MÍTICA DA HERMENÊUTICA
Etimologicamente a palavra “hermenêutica” provém do grego hermeneuein, “interpretar”, ou hermeneia, “interpretação”. A palavra também é associada a Hermes, o deus grego mensageiro, cuja função é “transformar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender” e a quem “os Gregos atribuíram a descoberta da linguagem e da escrita” . Ora, tal entendimento de Hermes como mediador e portador de uma mensagem é facilmente comparável ao papel do tradutor que apresenta um texto antes ininteligível àqueles que não dominam a língua estrangeira em que o texto foi escrito.
Segundo o Dicionário Enciclopédico das Religiões, (1995:443), o termo hermenêutica tem origem grega “hermeneutike” que se traduz por interpretação. É um método exegético que consiste no estudo do significado do texto bíblico tendo em conta a duplicidade de autor bíblico, isto é, o autor divino e humano. E que não implica a duplicidade de significados.
Por sua vez, a Enciclopédia Luso Brasileira Verbo XX (S/A:29) afirma que a palavra hermenêutica, do grego traduz-se por “falar”, exprimir, proclamar, interpretar, traduzir. Resume-se no induzir compreender algo por meio de palavras de transferência do sentido da expressão de uma língua para outra. No sentido religioso significa proclamação da mensagem divina. Nas primeiras igrejas, significava o comentário à Escritura enquanto conceito permutável e paralítico do exegeta.
De facto, a palavra “hermenêutica” prevê três significações diferentes resumidas no verbo “interpretar”. São elas: “1) exprimir em voz alta, ou seja, dizer; 2) explicar, como quando se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma língua estrangeira” . Esta última significação, a da interpretação como tradução, já é bastante consagrada nos estudos da tradução em geral. Mas, ao considerarmos a questão sob o ponto de vista da Hermenêutica, o acto de traduzir ganha uma nova dimensão.
Para Hans-Georg Gadamer, “toda tradução já é interpretação” . O filósofo alemão entende que o acto de interpretar é inerente a qualquer acto de compreensão. A compreensão, tal como Heidegger já a tinha concebido e Gadamer corrobora, acontece na e pela linguagem, a linguagem que é o meio pelo qual o ser humano compreende o mundo e é a própria razão de sua capacidade de compreendê-lo como tal. Desse modo, para Gadamer, compreender o que alguém diz é partilhar um universo de sentido, partilha que se realiza na linguagem. Para ele, portanto, a compreensão é “pôr-se de acordo na linguagem” enquanto a interpretação seria a “demonstração expressa” da compreensão, isto é, a “concreção do próprio sentido” . Isto revela que “compreender e interpretar estão imbricados de modo indissolúvel” .
A analogia entre leitura e tradução, conforme Gadamer as entende, aponta para uma certa desmitificação da tarefa tradutória na medida em que relativiza dois de seus pressupostos mais discutidos: a impossibilidade e a fidelidade. Se tudo é compreensão e interpretação, se estamos sempre praticando a “tradução” dentro de nossa própria língua, admitir a impossibilidade da tradução seria como admitir que qualquer acto de compreensão, seja ele uma conversa entre duas pessoas, a leitura de um texto, ou assistir a uma peça de teatro, é impossível.
A crença na impossibilidade da tradução, por sua vez, é intimamente relacionada a um desejo por uma fidelidade ilusória. É ilusória porque, na recriação de um novo texto em outra língua, há sempre o contraste entre dois horizontes, o do texto e o do tradutor, um contraste que reflete as diferenças inevitáveis entre as línguas e suas visões de mundo. Além disso, a crença na fidelidade admite uma sacralização da obra de arte, tomando-a como um objeto independente de nós, quando, na verdade, a obra só existe por meio da nossa interpretação. Considerando a obra de arte como manifestação de mundo, percebe-se que “a arte não é percepção sensível mas conhecimento” .
Assim, a dicotomia entre sujeito e objeto é revista, pois agora “não somos nós que interrogamos
um objecto; é a obra de arte que nos coloca uma questão, a questão que provocou o seu ser. A experiência de uma obra de arte é englobante e surge na unidade e continuidade do nosso próprio conhecimento” . Dada essa relação estreita entre sujeito e objeto, também a dicotomia forma e conteúdo, na qual a fidelidade está fundamentada, é relativizada ao considerar que a interpretação faz parte da própria manifestação da obra de arte e, assim, “o que é essencial na experiência estética de uma obra de arte não é o conteúdo nem a forma mas a coisa significada” que se revela pela interpretação.
Este argumento da possibilidade da tradução embasado na comparação à actividade da leitura e em relação à “indevida” oposição forma e conteúdo é similar ao que Henri Meschonnic defende em Pour la poétique II. Segundo Mauri Furlan,
A possibilidade de tradução, a partir de Meschonnic, pode ser defendida num mote: se a leitura é possível, a tradução é possível. A leitura é entendida como enunciação porque constitui cada vez, a cada enunciação, um sistema de signifiance, o sentido é produzido a partir do significante mesmo: não há separação entre conteúdo e forma .
Portanto, sob uma perspectiva hermenêutica, a tradução como interpretação se afirma como uma actividade possível, pois, como a interpretação é inerente a qualquer acto de compreensão desempenhado pelo ser humano, a tradução passa a ser apenas mais um desses actos, mas onde essa interpretação é consumada na reescrita de um outro texto. Essa reescrita tem como responsabilidade o horizonte do texto original em que os temas são interpretados num diálogo entre texto e tradutor. Tal actividade resulta em certa autonomia ao trabalho tradutório, pois desmistifica o conceito de fidelidade ao mostrar que a interpretação é um acto complexo, embutido em todos os mecanismos de compreensão.
Bibliografia Final
AA.VV, Enciclopédia Luso – Brasileira de Cultura, Vol. XVI, Editorial Verbo, Lisboa.
FURLAN, Mauri, Possibilidade(s) de Tradução(ões) in Cadernos de Tradução nº III. Florianópolis: UFSC, 1998.
GADAMER, Hans-Georg. A linguagem como medium da experiência hermenêutica In: Verdade e método I. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.
PALMER, Richard, Hermenêutica, Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Edições 70, Lisboa, 1986
SCHLESINGR, Hugo; PORTO, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Vol. I de (AJ), Editora vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1995.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vol. I. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 10 Ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
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